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Os Acordos de Dayton: A Promessa Que Nunca Foi Cumprida

 

Os Acordos de Dayton foram, à primeira vista, uma tentativa de devolver à Bósnia e Herzegovina algo que parecia perdido para sempre: a paz. Com a assinatura desses acordos em 1995, o mundo acreditava que a Bósnia renasceria das cinzas da guerra, que suas cicatrizes seriam suavizadas, e que as divisões étnicas e políticas, embora profundas, poderiam ser superadas com o tempo. Mas, ao caminhar por Sarajevo, anos mais tarde, em 2023, e tomar café com as pessoas, conversar e interagir com os olhares desconfiados, percebo que a promessa feita em Dayton foi, na maioria das vezes, apenas um ideal distante.

O que realmente representa, hoje, a Bósnia e Herzegovina? Quando observamos o cenário político e social, a resposta parece contraditória. Por um lado, vemos um país que ainda luta para se erguer, que enfrenta desafios imensos para superar os traumas da guerra e, por outro lado, vemos uma nação que permanece dividida, não apenas fisicamente, mas também emocional e psicologicamente, entre três povos e várias instituições que, em muitos casos, têm mais a ver com a manutenção do status quo do que com qualquer ideia de verdadeira unidade nacional.

Nesse tempo em que estou em Sarajevo, tento entender o que, para muitos bósnios, os Acordos de Dayton realmente significam hoje. Percebi que para alguns eles são vistos como uma salvação temporária, uma saída rápida para o caos da guerra; para outros, uma condenação, um lembrete constante de que a paz foi construída sobre fundações de desconfiança, de divisões étnicas institucionalizadas e de um sistema político que parece mais preocupado em garantir privilégios a grupos específicos do que em unir uma nação inteira.

Os Acordos de Dayton criaram uma estrutura política altamente fragmentada, com uma complexa divisão de poderes entre os três principais grupos étnicos da Bósnia: bósnios, croatas e sérvios. Isso resultou na criação de dois entes políticos: a Federação da Bósnia e Herzegovina e a República Srpska. Cada um com seu próprio governo, sistema judiciário e até até forças de segurança. A criação deste sistema, que deveria garantir a paz, também instaurou um novo problema: um labirinto burocrático e institucional que dificulta a governança e perpetua as divisões entre os três grupos. As estruturas criadas para garantir a coexistência se tornaram em muitas situações instrumentos de perpetuação do isolamento.

Lembro-me de uma conversa com um colega bósnio, que descrevia a situação política como uma dança de marionetes, onde os políticos controlam os fios, mas ninguém está verdadeiramente no controle. A corrupção, embora não algo novo no cenário pós-guerra, se alimenta da complexidade do sistema, pois as disputas entre os grupos étnicos oferecem o terreno fértil para que políticos aproveitem as divisões e se revezem no poder, em uma competição que nada tem a ver com o bem-estar da população, mas sim com a manutenção de privilégios e influência.

Na Bósnia rural, nas montanhas que cercam Sarajevo, em lugares como Mostar e Bratunac, a realidade parece diferente, mas depende muito com quem conversa e onde está. É difícil dizer, mas a esperança é que ela própria existe. Percebe? Ao me perguntar sobre a esperança, no fim das contas a esperança é que existe esperança. Quando converso com as pessoas no interior do país vejo que a dor da guerra não desapareceu, e muitas vezes é mais fácil culpar o outro do que confrontar a própria dor. De um modo geral é mesmo assim em qualquer outro lugar do mundo. Em Bratunac, por exemplo, onde perto dali ocorreu o genocídio de Serebrenica, encontro cooperativas agrícolas onde ambas etnias já trabalham juntas. Seria essa uma alternativa? Claro, penso eu. Qualquer alternativa para que estejam juntos é válida. 

De volta a Sarajevo, em mais um dos muitos cafés diários (impossível não aproveitar essa oportunidade) observava em Baščaršija a movimentação dos locais. Eu não sei se consigo ver a divisão ou sentir, então acho e faço votos para que sejam estágios que o tempo vai corrigindo, como em um processo químico da natureza onde o tempo é o elemento necessário para que as relações sejam incrementadas. Por outro lado, os Acordos de Dayton, para alguns, dão a impressão de que institucionalizaram uma separação indissolúvel. É uma visão pessimista. Crítica, claro, necessária, mas não é propositiva. Acredito que eles cumprem a função de forçar a paz e agora é preciso de algo a mais, inovador, para mover adiante e não mais "segurar os cavalos", até porque eles estão contidos. Um problema que aqui pode ser sinalizado é a questão identitária. A ideia de nós deu espaço ao nós-eles. As políticas de identidade étnica haviam se tornado não apenas uma questão política, mas também social, forçando as pessoas a se reconhecerem primeiro como membros de um grupo étnico, e depois como cidadãos da Bósnia. Não é raro ouvir alguém dizer: "Nós, bósnios, somos diferentes dos croatas e dos sérvios". E, mais uma vez, isso não é apenas uma afirmação de fato, mas um reflexo do modo como o país pode continuar na desconexão.

Se os Acordos de Dayton foram, de algum modo, uma tentativa de impedir a repetição da tragédia da guerra, eles falharam em criar as condições para uma verdadeira convivência pacífica. O mais paradoxal é que, mesmo diante da divisão e das dificuldades que o sistema de Dayton gerou, muitas pessoas ainda acreditam que a paz deve ser mantida a qualquer custo. Em uma das minhas conversas, uma senhora mais velha me disse: "A guerra nos ensinou uma lição importante, mas o preço foi alto demais. Hoje, o que queremos é viver em paz, mesmo que não sejamos todos amigos". Mas será que a paz construída sobre o medo e a separação é uma paz verdadeira? Galtung dividiu muito antes da Guerra da Bónsnia a paz em paz positiva e paz negativa, ou seja, uma paz que é a ausência de conflito e uma outra paz que é emancipadora, cooperativa, desenvolvimentista, positiva. Em qual delas podemos pensar a Bósnia? 

O sistema político, que deveria ser a espinha dorsal de uma nova Bósnia, continua impotente. Ele não faz mais do que refletir as divisões do passado, sem oferecer um caminho claro para um futuro comum. A ascensão de políticos populistas que exploram o medo e a desconfiança entre os grupos étnicos também contribui para o fracasso do sistema, enquanto o país permanece paralisado, à deriva, sem um rumo claro. A Bósnia é um mosaico quebrado, tentando se manter unido pela força de um sistema que, ao invés de promover a reconciliação, solidifica as linhas de separação. No entanto, não me sinto à vontade para opiniar de forma contundente, pois este é um tema que precisa de maior análise e participação para poder uma opinião atualizada. 

A beleza de Sarajevo, com suas ruas antigas e mesquitas imponentes, parece contradizer a complexidade da política local. Entre os cafés, as pessoas discutem, riem, e compartilham o cotidiano. Mas se você ouvir atentamente, notará que, em suas conversas, ainda há a pergunta não respondida: "Como seguir em frente?" A resposta permanece nebulosa, assim como os Acordos de Dayton, que, ao invés de curar as feridas do passado, tornaram-se mais um símbolo de uma paz incompleta, fragilizada pela complexidade que eles próprios impuseram. Seria possível dizer uma paz negativa de-cima-para-baixo?

À medida que deixei Sarajevo, atravessando as montanhas que cercam a cidade, mais uma vez me peeguei a refletir no taxi sobre o paradoxo de um país que sobreviveu à guerra, mas ainda não encontrou o caminho para a paz verdadeira, a paz de Galtung. A Bósnia vive com o fardo dos Acordos de Dayton, e o peso da história continua a ser uma carga difícil de carregar. O futuro, para muitas pessoas, parece depender de algo mais profundo do que acordos políticos e divisões institucionais. Depende de uma mudança que talvez nem os Acordos de Dayton possam proporcionar: a transformação da memória coletiva, do ódio para a reconciliação genuína, onde possam enxergar no outro a si mesmo. Se é difícil para nós, imagine para eles.

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