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Comer na Bósnia: Poema dos Sabores e dos Sentidos


Quando o sol brilha tímido sobre as montanhas da Bósnia e a estrada se estende à minha frente, como um convite silencioso, o cheiro que vem da fumaça nascida das chaminés me chega com força, como um abraço acolhedor. Estou a caminho de Mostar, em uma viagem que me leva mais longe do que apenas o meu corpo, que me arrasta até o coração da Bósnia. E é na estrada, entre os campos verdes e os bosques densos, que a comida, essa linguagem universal, começa a falar.

Lá, no meio de um campo que se estende sem fim, entre as estradas de terra batida, a parada é inevitável. O homem que serve o carneiro assado na brasa não diz muito, mas seu olhar conta histórias de uma terra que, à medida que você viaja, vai se revelando: marcada pela guerra, pela dor, mas também pela abundância, pela resiliência. O carneiro, simples e robusto, com seu tempero que parece não vir de lugar algum a não ser da terra onde cresceu, parece ser a essência da Bósnia. A carne macia, envolta em ervas silvestres que perfumam o ar, mistura-se à fumaça do fogo. E, enquanto saboreio aquela refeição, a estrada, e tudo o que ela representa, contemplo o majestoso rio Neretva que se revela diante dos meus olhos.

A comida na Bósnia tem um contexto diferente. A troca, o momento em que a comida se torna um gesto. Nos cafés de Sarajevo, sente-se o peso da história nas pequenas xícaras de café turco, espesso, forte, quase como a própria cidade. O aroma do café mistura-se com o fumo dos cigarros, e a fumaça parece carregar os murmúrios do passado e os ecos do presente. Acho que o cigarro ali é visto como um símbolo da resistência, da luta cotidiana, mas, ao mesmo tempo, uma distração silenciosa de uma sociedade que ainda não encontrou o seu lugar de descanso. Ele está sempre ali, como uma constante, como a Bósnia, que não esquece suas cicatrizes, mas segue, vivendo. O cigarro pode até incomodar o fôlego, mas não posso negar que ele faz parte da paisagem humana. Por vezes o cigarro foi um elemento muito humano, sem romantizar, minha estada na Bósnia. Apesar de não fumar, ele era sempre a forma mais fácil de deixar meus interlocutores à vontade, que sempre perguntavam se eu me importava se eles fumassem. Toda vez que consentia ao responder a pergunta, é como se estivessem com um amigo e assim me sentia também.

Na padaria, ou melhor, na pekara, a experiência se transforma em algo quase sacral. O burek, recheado com carne ou queijo, é mais do que uma simples comida: é um pedaço da alma bósnia, preparado com mãos que conhecem o segredo de transformar a simplicidade da massa em algo grandioso. Como um rito diário, o burek surge, fresquinho, assado na hora, sendo devorado com pressa, mas também com devoção. Em cada pedaço, há uma história da cidade, da vida de quem preparou, de quem come, de quem compartilha. E quando você o coloca na boca, é impossível não sentir a conexão com as gerações que vieram antes de você, com um país que encontrou na comida uma das poucas formas de resiliência.

O meu favorito, srnica, essa delícia de massa folhada, é outra surpresa que se revela em cada esquina. Quando o pedaço chega à boca, seus sabores se desdobram lentamente, como uma viagem. O doce da massa se mistura com o recheio de queijo fresco, leve, que é tão suave quanto o sorriso da senhora que me ofereceu na pequena loja em Sarajevo. "Tire um pedaço", ela me disse, com os olhos brilhando. E aquele era também de generosidade bósnia. Era um pedaço de história compartilhada, uma herança de gerações que preservam os sabores da terra, do sol, da guerra e da paz.

Mas há algo que para mim e minha esposa transcende até a comida: kaymak, o creme que transforma qualquer prato em algo divino. Na sopa de lentilhas, na sopa de feijão, na sopa de carne, e, especialmente, quando mergulhamos nela Uštipci (paeszinhos quentes como pasteis). Kaymak talvez seja a ligação entre o sabor e a alma culinária do país, entre a tradição e a memória. Pode parecer piegas e clichê, mas mergulhar esses bolinhos quentes na sopa, sentir a textura cremosa do kaymak se misturando com o caldo quente é mesmo um abraço. É o afeto disfarçado de comida, o acolhimento de um país que, apesar de tudo, ainda sabe como cuidar de quem passa.

E então há os mercados. Os mercados de Sarajevo, repletos de vida, de cor, de gente. No mercado, um guia me levou até uma senhora que, com mãos experientes, me ofereceu um pedaço de queijo fresco, curado na perfeição. O queijo, com sua textura macia e sabor forte, dizia tudo sobre a terra onde cresceu. Ele falava de uma Bósnia que se alimenta das montanhas e dos campos, que mantém viva a tradição, mas que também olha para o futuro. O mercado é um lugar onde o passado e o presente se encontram. Ali, no bulício, as frutas, os queijos, as ervas e as carnes se misturam, mas também as histórias de quem vende, de quem compra. Cada pedaço de queijo que comprei foi mais do que alimento; foi uma memória, uma conexão com uma gente que soube e sabe resistir. Sou grato. 

E o sorvete... Ah, o sorvete que tomei, em uma tarde fria e com neve, em frente ao prédio que já foi a sinagoga Ashkenazi. O sorvete, gelado e doce, foi o ponto de pausa. Enquanto o saboreava, olhando para a praça, perto do que um dia foi uma sinagoga, pensei naquilo que aquele prédio representou e naquilo que a Bósnia representa hoje: uma mistura de culturas, de memórias, de coexistências. O sorvete, simples, mas pleno em sabor, parecia refletir a leveza de um momento fugaz, mas, ao mesmo tempo, a profundidade de um país que não deixa de lado suas raízes, mas que também se reinventa a cada dia.

Comer na Bósnia é uma experiência gastronômica. É um rito. Um diálogo com o passado, com a dor, com o orgulho de um povo que sobreviveu à guerra e que agora sobrevive, mais do que tudo, na sua capacidade de se manter unido através dos sentidos. Cada pedaço de burek, cada gole de iogurte, cada pedaço de queijo fresco é, de alguma forma, uma resposta a tudo o que foi perdido, uma afirmação da continuidade, uma resistência silenciosa, mas forte, como as montanhas que cercam a cidade. E em cada refeição, eu me vejo mais perto da essência deste país, mais conectado com ele, como se a comida fosse a chave para uma compreensão mais profunda da sua gente e da sua história. E olha que eu nem falei do Cevapi, mas fiz de propósito para que possam ir até lá descobrir do que se trata tudo isso. 

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