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O General Jovan Dviak: A Memória Viva de Sarajevo


Quando, em 2013, desembarquei pela primeira vez em Sarajevo, mal sabia que a cidade me reservava uma das mais comoventes surpresas da minha vida. Era uma tarde de primavera, a cidade respirava tranquilidade, e a Avenida Marechal Tito se desenrolava à minha frente com sua rotina vibrante e marcada pela história. A guia que me acompanhava, uma mulher que parecia carregar no olhar toda a carga emocional de uma cidade que nunca parou de sofrer, interrompeu nosso passeio com uma frase que, até aquele momento, não fazia sentido para mim.

“Você sabe quem é aquele senhor?” Ela indicou um homem idoso saindo de um mercado, com sacolas nas mãos, andando lentamente pela calçada. Eu olhei na direção que ela apontava, mas não fazia ideia de quem se tratava.

Ela ficou atônita por um momento, como se tivesse sido invadida por uma memória que transbordava em emoção. Então, com um brilho nos olhos, ela disse: “É o general Jovan Dviak. Um herói da guerra.” Sua voz vacilou por um segundo, como se a simples menção do nome tivesse o poder de ressuscitar as dores e as esperanças de uma época conturbada. Ela me perguntou, em um tom quase reverente, se eu não gostaria de cumprimentá-lo.

Sem hesitar, fui com ela até o senhor. Ele estava ali, como se o tempo tivesse deixado de passar para ele, entre o mercado e a calçada, com a mesma humildade que o destino exige daqueles que carregam grandes responsabilidades. Quando nos aproximamos, ele me olhou com um sorriso suave, mas firme. Não era um sorriso qualquer; era o sorriso de quem havia visto e vivido mais do que qualquer ser humano deveria. Cumprimentei-o, e, em um gesto de pura generosidade, ele aceitou minha saudação com uma cortesia que já não se vê com frequência. Não só me saudou, mas fez questão de me fazer sentir que estava sendo mais do que gentil, estava compartilhando um pedaço de sua história com um estranho.

Naquele momento, o fato de ser brasileiro parecia ter o poder de transformar a situação em algo ainda mais especial. Como brasileiro, me vi recebido com um calor humano que poucos poderiam imaginar. Há algo peculiar nos encontros entre bósnios e brasileiros. O distanciamento geográfico, a proximidade cultural, ou talvez a naturalidade de nossa alegria, faz com que a conexão entre os dois povos seja, em sua essência, quase imediata. O sorriso do general Dviak ao ouvir minha origem parecia mais uma saudação a um irmão distante, que em um passado remoto compartilhou com ele um certo espírito de resistência, um espírito que permeia as duas culturas.

Fiquei impressionado, não apenas pela oportunidade única de estar diante de um homem que havia sido parte crucial da resistência bósnia, mas pela facilidade com que ele me fazia sentir parte da sua história. Durante nossa breve interação, na simplicidade de suas palavras e gestos, carregava consigo a própria alma de Sarajevo. A cidade, uma vez dilacerada pela violência, mas hoje pulsante com o eco das histórias de resistência e sobrevivência, havia dado a mim a oportunidade de fazer parte de um capítulo silencioso, mas eterno, de sua luta.

A imagem daquele senhor idoso, com sacolas simples, caminhando lentamente sob a luz suave da tarde, permanece gravada em minha memória. Ele não se vestia como um herói clássico, nem carregava medalhas visíveis ou discursos imponentes. Ele era, na verdade, a antítese dos grandes ícones de guerra que imaginamos, e talvez, justamente por isso, sua presença fosse ainda mais potente. Jovan Dviak era a própria resistência. Ele representava, em sua figura calma e serena, a coragem silenciosa de milhões de bósnios que, durante anos, enfrentaram a guerra e a destruição.

Passaram-se dez anos desde aquele encontro, e o general Dviak não mais habita este mundo. Sua morte deixou um vazio, um silêncio que ressoa nas ruas de Sarajevo, mas também uma presença que jamais se apagará da memória coletiva da cidade. Ele foi parte essencial da história da Bósnia, principalmente quando a reconstrução do país exigia não só cimento, mas também alma e dignidade. Não teve um único dia em que eu passasse pela Avenida onde encontrei ele em 2013 que eu não lembrasse dele. Me marcou e marca muito e poder retornar a Bosnia, permanecer por mais tempo e visitar essas memórias me trazem muita emoção, principalmente com o gesto do General e a forma que me acolheu. É como se ele fizesse o mesmo hoje sem estar ali para me receber. O povo faz por ele, pois no fim, são todos um, e talvez isso seja a chave para ir adiante com o país. Jovan Dviak era sérvio, mas passou para o outro lado durante o conflito, o que representa muito para os bósnios, mas para nós mesmos. 

Hoje, cada vez que falo sobre Sarajevo e seus heróis, o nome de Jovan Dviak surge inevitavelmente. Ao conversar com pessoas, seja em Sarajevo ou em outros cantos do mundo, é impossível não perceber a emoção nos olhos daqueles que, como eu, tiveram o privilégio de conhecer a grandeza deste homem. Sua figura, tão simples e tão cheia de história, transcende o tempo e o espaço. Ele é, para a Bósnia, um farol de coragem, resiliência e humanidade.

Por mais que a história da Bósnia seja repleta de cicatrizes e traumas, ela também é marcada por pessoas como Jovan Dviak, cujas ações falaram mais alto que qualquer palavra. Ao recordar a nossa conversa breve, mas profundamente significativa, e ao refletir sobre o impacto que ele teve em minha vida e na história do país, sinto uma gratidão imensa por ter sido tocado por sua presença.

Venho aqui hoje para de alguma forma compartilhar essa memória, experiência, mas para render singela homenagem ao General. Ela é um tributo a um homem que se fez imortal não pela guerra que travou, mas pela forma como viveu e permaneceu fiel aos seus princípios. Jovan Dviak, através de sua humildade e coragem, se tornou uma das figuras mais representativas da alma de Sarajevo e, por extensão, da alma de toda a Bósnia. Este é, portanto, um pequeno gesto de homenagem, algo que apenas tenta, de maneira modesta, capturar a grandiosidade de uma vida dedicada à resistência, à pátria e à humanidade.

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