A Última Lição de Alija Izetbegović
Sarajevo acorda envolta em névoa, essa mortalha úmida que parece proteger as cicatrizes da cidade. No cemitério de Kovači, onde as lápides brancas se alinham como um exército silencioso, busco o túmulo de mármore verde. Ali repousa Alija Izetbegović, jurista, poeta e comandante involuntário, cuja vida é um espelho partido refletindo os paradoxos dos Bálcãs. O ar cheira a café turco e terra lavada pela chuva noturna. Nas ruas íngremes, turistas fotografam cafés da moda enquanto senhoras de xale negro depositam crisântemos nos túmulos dos šehids, os mártires. Esta é a coreografia diária de uma cidade que aprendeu a dançar sobre suas feridas.
No Museu Alija Izetbegović, um exemplar gasto de O Islã entre Oriente e Ocidente jaz aberto sob vidro. As margens rabiscadas revelam um homem que debatia Spengler e Rumi enquanto a Iugoslávia desmoronava. "Para ele, a Bósnia não deveria ser trincheira, mas ponte", sussurra o curador, apontando para a foto que congela um momento surreal: Izetbegović recebendo João Paulo II em 1997, sob luz de velas, enquanto granadas caíam nas colinas de Grbavica. Naquele abraço entre o líder muçulmano e o Papa, havia todo um manifesto político escrito sem palavras.
As marcas do tempo estão por toda parte. Na madrugada de 11 de agosto de 2006, uma explosão rasgou o silêncio de Kovači. Quando a poeira baixou, uma cratera de setenta centímetros deformava o túmulo, mármores estilhaçados, vidros de carros despedaçados. Nenhum grupo reivindicou o atentado, apenas "motivações políticas" murmurou o procurador Miroslav Marković. Hoje, fissuras no mármore reparado contam essa história melhor que qualquer discurso. Amina, sobrevivente do cerco, limpa a lápide com movimentos rituais: "Atacaram até seus ossos, mas sua ideia, uma Bósnia plural, permanece inquebrantável".
No terraço do Hotel Holiday Inn, onde Izetbegović dirigiu a resistência, o gerente Mehmed recorda noites de surrealismo bélico: "Discutia Kant com generais entre sirenes de alarme aéreo. Dizia que a beleza das estrelas sobre Sarajevo sitiada era sua prova contra a barbárie". Abaixo, na Baščaršija, lojas vendem börek ao lado de estandes com camisetas estampando seu rosto e a palavra Dedo - "avô", o apelido carinhoso que os bósnios lhe deram. Atrás do balcão, Adnan, neto de refugiados, oferece chá de ervas: "Ele nos ensinou que identidade não é prisão, mas raiz".
Sua vida foi um labirinto de paradoxos. O mesmo homem condenado por Tito em 1946 por "atividades islâmicas" fundaria décadas depois um partido que defendia estado secular. O intelectual que escrevera Declaração Islâmica recusou-se a criar uma teocracia quando o poder chegou. O pacifista que lia Spinoza transformou-se em comandante quando tanques sérvios cercaram Sarajevo. "Prefiro morrer em meu país a viver como refugiado", declarou, governando de um quarto de hotel sem aquecimento, assinando decretos com luvas de tricô.
Em Dayton, em 1995, seu maior ato de coragem foi a rendição negociada. Aceitou dividir a Bósnia em entidades étnicas para deter o sangue. "Foi como amputar o próprio filho para salvá-lo", confessou a seu biógrafo. Quando líderes sérvios exigiram que Sarajevo fosse dividida, respondeu com uma pergunta: "Como partiriam o aroma do café da manhã em Baščaršija?".
Na Fortaleza Amarela, turistas fotografam a cidade enquanto guias sussurram: "Daquele morro, snajperisti matavam crianças que carregavam água". O cemitério de Kovači estende-se aos pés da colina — Izetbegović jaz entre os jovens que morreram defendendo sua visão de Bósnia. Em seu funeral em 2003, cento e cinquenta mil pessoas marcharam sob chuva. O alto-representante da ONU Paddy Ashdown declarou: "Até o céu chora pela Bósnia hoje". Políticos sérvios bloquearam a renomeação do aeroporto em sua homenagem, gesto que sintetiza a casa compartilhada onde os inquilinos sequer se cumprimentam.
Deixo Sarajevo ao alvorecer. Na estrada para o aeroporto, passo pela Biblioteca Nacional, sua fachada ainda marcada por impactos de granada, mas com salas repletas de livros restaurados. Um outdoor mostra seu rosto com a frase: "Nem mesquita, nem catedral, apenas um lar". Seu epitáfio verdadeiro não está no mármore de Kovači, mas no silêncio dos bósnios quando interrogados sobre o futuro. Um silêncio que não é resignação, mas terra fértil onde germina a semente teimosa da esperança. Como escreveu em testamento: "Deixo-vos um país que talvez não alimente vossos corpos, mas alimentará vossas almas".
À saída da cidade, uma árvore ergue-se solitária numa colina. Difícil saber quando nasceu, mas eu costumo pensar que muitas coisas assim sobreviveram as guerras, incêndios e invernos cruéis. Suas raízes profundas bebem das mesmas águas que alimentam o rio Miljacka. Talvez seja esse seu legado final: a lição de que algumas árvores, como algumas ideias, podem dobrar-se na tempestade, mas não se deixam arrancar. Hoje observamos e, sem dúvida, lembramos.
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