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As Geometrias da Memória: Arquitetura Iugoslava na Bósnia e os Ecos de Brasília


O sol da tarde desenha ângulos agudos sobre os blocos de concreto de Gbravica, em Sarajevo. Caminho entre edifícios que se erguem como esculturas funcionais, linhas retas, varandas suspensas, pilotis que sustentam não apenas estruturas, mas histórias. Há algo de profundamente familiar neste cenário. Talvez seja a sombra dos pilotis, idênticos aos da Asa Norte de Brasília, onde nasci. Ou talvez seja o ritmo das fachadas, aquela gramática modernista que fala uma língua que meu corpo reconhece antes mesmo que minha mente decifre.

A arquitetura iugoslava na Bósnia é um paradoxo geopolítico moldado em concreto. Entre as décadas de 1950 e 1980, surgiu aqui um modernismo híbrido: socialista na escala, mas dissidente na estética. Enquanto o realismo socialista soviético erguia palácios neoclássicos para glorificar o Estado, a Iugoslávia de Tito, livre da Cortina de Ferro, abraçou o brutalismo e o regionalismo crítico. Edifícios como o Elektroprivreda Building (1978), de Ivan Štraus, com suas fachadas de betão cru e janelas labirínticas, ou o Instituto de Higiene (1950), de Tihomir Ivanović, um cubo flutuante sobre pilotis, não eram meras construções. Eram manifestos políticos. "Queríamos construir um futuro que não se curvasse nem a Moscovo nem a Washington", confessou-me um velho arquiteto bosníaco, enquanto apontava para o Dom Mladih Skenderija (1969), centro cultural cujas ramas de concreto parecem abraçar a cidade.

Minha relação com esses espaços é íntima e sensorial. Cresci em Brasília, onde os superquadras de Lúcio Costa me ensinaram que as cidades podem ser poemas racionais. Na escola, os corredores largos e as janelas enfileiradas como soldados democratizavam a luz. No hospital, as paredes brancas e os jardins internos transformavam a dor em geometria. Tudo era funcional, tudo tinha um propósito. Quando cheguei à Bósnia pela primeira vez, em 2013, instalei-me num apartamento no bairro de Džidžikovac. O prédio, projetado por Andrija Čičin-Šain em 1953, tinha varandas profundas e loggias que filtravam o sol — uma reinterpretação moderna das doksa tradicionais bósnias. Todas as manhãs, ao passar pelos pilotis, via crianças brincando sob aqueles pilares. O mesmo cheiro de tília, pensei. A mesma sombra fresca que abrigava meu ciclismo infantil no Eixão.

Nesses espaços, a arquitetura era mais que forma: era ritual. Os mercados sob os blocos, as escadas que convidavam a conversas, os terraços onde se secavam pimentas vermelhas — tudo me lembrava a organicidade planejada do Plano Piloto. Até o Papagajka (1982), o prédio colorido de Sarajevo que parece um LEGIÃO desmontado, ecoava a ousadia de Brasília. Nele, as cores primárias — amarelo, vermelho, azul — desafiavam a seriedade do socialismo, tal como os murais de Athos Bulcão alegravam o Congresso Nacional.

Mas nem tudo era harmonia. A arquitetura iugoslava carregava contradições. Enquanto Brasília nascia ex nihilo como símbolo de um novo Brasil, a Bósnia herdava camadas de história: otomana, austro-húngara, socialista. Projetos como o Hotel Holiday Inn (1983), de Štraus, com sua fachada laranja vibrante, eram ilhas modernas num mar de casarões secessionistas e minaretes. E havia as ruínas do futuro: o Staklena Banka (O Banco de Vidro) em Mostar, um esqueleto brutalista bombardeado na guerra, cujos andares fantasmas ainda suspiravam pelo mundo que não chegou a ver.

Essas estruturas falavam de um projeto político ambicioso: usar o concreto para unir etnias. O complexo UNITIC, com suas torres gêmeas apelidadas "Momo" (sérvio) e "Uzeir" (bosníaco), simbolizava uma fraternidade artificial. Mas em 1992, quando a guerra esfacelou a Iugoslávia, esses edifícios tornaram-se trincheiras. O mesmo pilotis que abrigava jogos infantis virou cobertura para snipers.

Por que essa arquitetura me toca tão profundamente? Talvez porque Brasília e a Bósnia socialista compartilhem um DNA utópico. Ambas nasceram de um gesto modernista que acreditava na cidade como motor de transformação social. Ambas usaram o concreto não como material, mas como promessa. Em ambas, os blocos residenciais eram experimentos de igualdade: cada varanda um palco para a vida comum, cada praça um convite à coletividade.

Mas há diferenças fundamentais. Enquanto Brasília era monolítica, um plano único, uma linguagem coerente, a Bósnia iugoslava era polifônica. Arquitetos como Juraj Neidhardt, discípulo de Le Corbusier, buscaram sintetizar o moderno com o vernáculo. Seu Instituto de Física e Química (1964) em Sarajevo misturava brise-soleis racionalistas com pátios que evocavam os avlija otomanos. Já o complexo UNITIC, com suas torres gêmeas, parecia espelhar a própria fragmentação da Iugoslávia, duas torres, duas identidades, uma história dividida.

Na Bósnia, como em Brasília, a arquitetura não se limitava à construção de paredes e telhados. Ela era um reflexo das esperanças e frustrações de um povo, um testemunho de utopias realizadas e destruídas. E, à medida que caminho sob o concreto frio de Sarajevo, sinto-me em casa, mesmo distante. A geometria das cidades, com suas linhas retas e suas sombras alongadas, tinha algo de universal, algo que não se perde com a distância.

Em Sarajevo, o que mais me faz sentir perto de casa é a arquitetura e as árvores. Eu entendo que não foi por acaso ter encontrado uma residência em Grbavica. 

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