Foi na praça Alija Izetbegović, em Sarajevo, que, ao caminhar distraído, parei diante de um conjunto de bustos que, ao princípio, me pareceram apenas figuras de pedra. Mas, ao me aproximar e observar mais atentamente, as expressões esculpidas nas faces dos escritores começaram a contar histórias. Não eram meros monumentos; eram vozes, algumas mais silenciosas, outras quase gritando, ressoando através do tempo. E foi ali, naquela praça, que os sentimentos e os pensamentos que estavam dentro de mim se organizaram de uma forma mais intensa. Estava diante de um lugar que não apenas homenageava o passado literário da Bósnia, mas também dava uma lição direta sobre o presente. Todos os dias cruzava a praça para ir até a Universidade até que um dia parei para contemplar.
Cada busto parecia me desafiar, convidando-me a refletir sobre os seus autores e as marcas que deixaram. Veselin Masleša, com seu olhar firme e severo, refletia um espírito de resistência, o mesmo que o levou a lutar contra as forças nazistas até sua execução. Não pude deixar de pensar na coragem do homem, na sua fé nas ideias que o guiavam, e na tragédia de uma vida interrompida tão cedo.
Logo ao lado, o Ivo Andrić parecia olhar com a serenidade de quem entendeu as complexidades humanas. Seu “Ponte sobre o Drina” não é apenas uma obra literária; é uma metáfora da Bósnia, com sua história entrelaçada por rios de etnias, religiões e conflitos. Eu sentia que, ao olhar para o busto de Andrić, ele me observava também com a sabedoria de quem viveu em Sarajevo, uma cidade que, como ele, parece carregar o peso da história em suas costas.
Na sequência, me deparei com o busto de Rodoljub Čolaković e de Branko Ćopić, autores cujas palavras atravessaram os tempos de guerra e esperança. Eles eram contadores das vidas comuns e extraordinárias que se entrelaçam no destino da Bósnia. Aquelas vidas que, como as de tantos outros, foram moldadas por guerras e por amores, por perdas e vitórias.
Mas o busto que mais me tocou foi o de Mak Dizdar, o poeta. Sua poesia mística, cheia de simbolismos, parece se emanar da própria terra bósnia, de suas montanhas e rios. Fiquei ali, parado, imaginando que ele olharia para mim com a suavidade de quem compreende os mistérios do universo e da vida, e que, de alguma maneira, seus versos ainda estavam vivos naquele lugar. Era como conversar um pouco com cada um deles. Vai ver que essas estátuas representam mais do que a homenagem póstuma, mas a capacidade de dialogar, conversar, refletir, meditar.
E então, mais adiante, a visão de Skender Kulenović e Meša Selimović me trouxe a profundidade da tragédia da guerra, da perda e da busca espiritual que marcaram a história deste país. O olhar deles, como o de outros grandes escritores, não se limitava ao presente, vislumbrava os labirintos do tempo, em uma busca constante por respostas. A praça se transformava em uma biblioteca para mim, sem limites, infinita por ter o céu como teto e a possibilidade de contemplar a vida e obra de cada autor ali imortalizado.
Passei um tempo ali, imerso naquela praça silenciosa, onde os bustos se revestiam em emblemas da resistência cultural do país. Pensei no peso que a literatura carrega, na maneira como ela molda as identidades e como o simples fato de "conhecer" esses escritores me obrigava a repensar não apenas Sarajevo, mas o meu próprio lugar no mundo. É um convite, uma necessidade, uma ansiedade por saber mais, conhecer mais, entender mais, talvez assim as dúvidas e angustias de viver e estar distante de casa mas em outra casa a procurar perceber o olhar do outro e a realidade do outro tão diferente, difícil, ao tempo em que interessante, intensa e necessária. Que momento ímpar queria ali eternizar, parar o relógio e permanecer mais ao lado daqueles grandes autores.
Ali, naquela praça, me senti compelido a refletir sobre a necessidade que temos de examinar e entender os pensamentos que nos antecederam. A literatura como uma verdadeira arma em defesa da ignorância, da falta de elegância muito mais do que de educação propriamente. É necessária, urgente. Ela nos protege contra a escuridão, contra os preconceitos, contra a solidão do desconhecimento, contra a guerra, o conflito. Ela une. Eu senti que, ao absorver essas histórias, me reconhecia nelas e me via ali, como parte do todo. Uma forma de também (re)conhecer o país.
Quando passei por Grbavica, mais tarde, retornando para casa, a sensação de estar caminhando sobre as cicatrizes de uma guerra não era mais uma abstração. Com os bustos de escritores em minha mente, cada pedaço da cidade, cada rua, cada monumento me falava, ainda falam, ecoam. A literatura, como a história, não se apaga. Ela persiste, vibrando nas pedras, no ar, nos olhares. É intenso, mágico até, é com intenção verdadeira, autêntico. Difícil explicar, colocar em palavras. Talvez um dos bustos ali representados conseguissem, não eu. Aprecio, admiro, muito, intensamente, vivo, quisera um dia conseguir explicar tudo isso, esse sentimento que pode ser tudo e nada ao mesmo tempo e tão difícil de compartilhar. Vou chamar de vivência-experiência.
E foi assim, diante desses bustos, que entendi que a literatura bósnia é um grito ou o grito que ecoa, atravessa gerações, e nos impele a não esquecer. Ela é uma forma de manter a memória viva, mesmo quando as sombras do esquecimento ameaçam nos engolir. E eu, naquele momento, soube que minha estada em Sarajevo, e em toda a Bósnia, não seria completa sem levar comigo o peso e a beleza das palavras desses grandes escritores. Essa é a maior bagagem que podemos carregar sem correr o risco de pagar excesso.
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