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O Eco do Cerco de Sarajevo: Reflexões sobre Vestígios do Passado

Ao caminhar pelas ruas de Sarajevo, é impossível não sentir o peso de uma história que não se apaga, mas que se reinventa a cada passo. Não são apenas as cicatrizes das balas nas paredes ou as marcas da destruição que moldam a cidade, mas também o modo como seu povo, com uma resistência quase heroica, reconstruiu o que parecia irremediável. Morar e vivenciar Sarajevo em 2023 é, para mim, um exercício diário de contemplação, de tentar compreender a complexidade de um lugar onde os ecos do cerco de 1992-1995 ainda ressoam, como um sussurro que nunca se apaga completamente.

Quando cheguei aqui, já imaginava que a cidade, com suas ladeiras apertadas e seu caos cosmopolita, teria tanto a me dizer. Cada rua, cada esquina e até cada café parecem guardiões de uma memória coletiva que pulsa, mas que, ao mesmo tempo, está soterrada sob uma fachada de normalidade. Sarajevo, com sua inconfundível mistura de influências orientais e ocidentais, carrega consigo uma ambiguidade que reflete a própria história da Bósnia, um espaço de encontros e desencontros, de convivência e conflito, de alegrias e tragédias.

As marcas do cerco, por mais que tentem se disfarçar sob a tinta fresca de uma cidade em constante recuperação, estão por toda parte. Não é apenas o “tunel da esperança”, ou os museus espalhados pela cidade, que nos lembram do que aconteceu aqui. São as pessoas. É a maneira como os sarajevitas, com uma simpatia inusitada, carregam, muitas vezes sem perceber, o peso de um sofrimento coletivo passado que é difícil de explicar a quem nunca o viveu. Em cada sorriso, há uma história; em cada gesto amigável, um lembrete de que a guerra não foi apenas uma catástrofe, mas uma transformação profunda de uma sociedade que, ao longo dos anos, conseguiu renascer das cinzas.

Eu passei boa parte dos meus dias entre a Universidade de Sarajevo e a Grbavica, muito próximo do parlamento do país. Desse trajeto, assim como em bao parte da cidade, muito camimhei. Em Baščaršija, talvez o bairro mais conhecido, central e turístico, é onde podemos tentar passar por despercebido, como turista, como local, como alguém que ali está. Aquele labirinto de ruas estreitas e cheias de vida, me vi, por vezes, tentando entender o que é ser sarajevita hoje. É algo que vai além da memória, é algo que se entrelaça com o cotidiano, com as dificuldades de uma cidade que ainda luta para se libertar das amarras do passado. Como se o tempo tivesse parado em 1995 para uns, mas para outros, a luta pela reconstrução pessoal e social ainda estivesse longe de terminar. É nas conversas com colegas da universidade, na troca de olhares entre jovens e idosos, que o impacto do cerco se revela de maneira mais sutil. Eu achava que não se falasse disso de forma explícita, mas me surpreendi quando sempre que conversava com alguém ouvia uma opinião sincera a respeito do tema, que contrastava com essa vontade de seguir adiante. Todos sabem que é uma parte intrínseca de sua identidade.

Foi no campus da Universidade de Sarajevo que encontrei as vozes mais claras da reconstrução. Jovens bósnios, que nasceram após a guerra, tentam compreender um passado que não viveram, mas que de alguma forma define suas vidas, está latente nas famílias e na história. É fácil de perceber isso quando tentamos nos colocar no lugar deles, quando buscamos na mente as histórias, lutas e tradições de nossas famílias. Portanto, não é difícil perceber isso. Eles, como eu, caminham pelos mesmos lugares onde as balas caíam e as sirenes soavam. As universidades, apesar de suas paredes marcadas, são espaços de renovação, de resiliência intelectual. Conversando com meus colegas, percebi que há vontade e até tentativa de reconciliação, de reconstrução não só da cidade física, mas do espírito coletivo. É uma reconstrução que não ignora o sofrimento, mas que busca algo mais: um futuro onde as cicatrizes, ainda visíveis, se transformem em testemunhos de superação. Como é complexo procurar entender isso.

Em minhas caminhadas, não pude deixar de seguir o rastro dos marcos do cerco: os edifícios destroçados, as marcas nos muros e paredes e até mesmo os campos minados, que se tornam parte da paisagem cotidiana. Nos museus senti o peso da história contada ali. As fotos, os relatos e os vídeos mostram um sofrimento indescritível, mas também um orgulho imenso do povo que sobreviveu a esses horrores. O cerco, que durou quase quatro anos, não foi apenas uma guerra de armas, mas uma batalha pela dignidade. Sarajevo, uma cidade cercada e isolada, resistiu ao cerco não apenas com a força física, mas com a resistência espiritual. Eu assim percebo.

Ao viajar pelo interior, Mostar, Bratunac,Visegrad, Bjeljina e Donji Angićji, entrei em territórios onde as feridas da guerra ainda não estão totalmente fechadas. Nessas cidades, a dor do passado se mistura com as tensões políticas e sociais de um país que ainda busca entender como lidar com seu próprio legado. Ao conversar com as pessoas do interior, fui confrontado com a realidade de uma sociedade fragmentada. Em Bratunac, por exemplo, encontrei pessoas que, com um olhar silencioso, pareciam carregar o peso de um conflito que ainda não encontrou suas palavras de reconciliação. Já em Bjeljina, notei uma realidade diferente, onde as cicatrizes do conflito ainda são recentes e as tensões entre as diferentes comunidades são palpáveis. Não foi fácil, mas esses encontros foram necessários para entender a complexidade da Bósnia e seus múltiplos rostos. Creio que não consigo transmitir o que de fato possa existir, mas de alguma forma quero acreditar que exista uma essência, na percepção que tive, de coexistência.

Para mim, é impossível falar da Bósnia sem lembrar de Ivo Andrić, cujos escritos, como em "A Ponte sobre o Drina", continuam a ecoar em todos os cantos da região. A obra de Andrić é um lembrete de que a história da Bósnia, com seus conflitos e divisões, é muito mais longa do que os eventos de 1992-1995. Andrić, em sua escrita, retratou a alma da região, suas complexidades, suas contradições, e talvez, por isso, seus livros ainda encontrem ressonância nas conversas sobre a Bósnia contemporânea. Como Andrić, eu também vejo a Bósnia como um lugar de encontros e desencontros, de uma história que nunca se apaga completamente, mas que se reinventa a cada geração. Ele nos convida a pensar assim e nos alimenta com um entendimento difícil de descrever ou colocar tão bem em palavras como colocou.

Depois de alguns meses no país, me senti diferente. Não foi minha primeira visita, pois há 10 anos eu já havia estado por alguns dias a percorrer o país. Todavia, estar e viver, interagir, fazer compras, dialogar com as pessoas, ter uma rotina e vivência é muito diferente. Quase podemos sentir as cicatrizes de uma guerra recente que ainda dominam, mas eu disse quase, pois isso é impossível. A vivência não permite isso, mas ela é um exercício profundo de empatia que nos move em um terreno onde queremos, de alguma forma, superar o passado que não é nosso do ponto de vista pessoal, mas isso pode ser melhor examinado se elevamos nossas consciêncais a um nível coletivo. Vi Sarajevo em 2013 e vivenciei Sarajevo em 2023. É uma cidade que se reinventa, ainda que carregue o peso de uma história indelével. Andei pelas mesmas ruas onde antes o medo se espalhava e vi a cidade florescida de uma maneira discreta, mas intensa.  Ao mesmo tempo, percebi que o cerco de Sarajevo não é apenas uma história do passado, é uma realidade viva para muitos, um lembrete de que a paz não é algo que se conquista uma vez e para sempre, a paz se conquista todos os dias, na reconstrução das ruas e das almas. No entender o outro, no respeitar o outro, sem anular nossa essência, mas guardar o ego para dar espaço ao outro.

Sarajevo, em sua complexidade, sua dor, sua beleza e sua resistência, é um microcosmo da Bósnia: uma terra marcada pelo conflito, mas também pela esperança de reconstrução, pela luta de um povo maravilhoso, tão próximo, que, apesar de tudo, acredita no futuro. E ao caminhar pelas ruas da cidade, ao conversar com seus habitantes e ao visitar os museus que guardam as memórias do cerco, não pude deixar de sentir que, embora o cerco tenha acabado, a lembrança marca o processo de cura e reconstrução que, de alguma forma, lembra um momento que não se quer voltar. 

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