Hoje resolvi sair para um passeio a pé com um colega local da Universidade. Foi uma dessas manhãs claras que se desdobram lentamente, como se o tempo estivesse de acordo com a cidade, suave e sem pressa. Fomos fazer uma caminhada e à medida que a conversa fluía entre cafés e palavras, ele, com seu entusiasmo característico, começou a falar sobre a história da cidade. Eu, de certa forma, já sabia o essencial, mas o que ele me disse em frente à imponente mesquita de Gazi Husrev Bey mexeu comigo de uma maneira que ainda não consegui definir completamente.
Gazi Husrev Bey não era apenas um nome, mas uma presença tangível, um pilar. Nascido em Serres, ele não apenas liderou expedições militares e expandiu os domínios do Império Otomano em regiões distantes, como Croácia e Hungria, mas também, e talvez mais importante, deixou uma marca profunda na Sarajevo moderna. Uma marca feita de pedras, tijolos e, de certa forma, de destino.
Foi ali, em frente à sua mesquita, que meu amigo mencionou como o bey havia ordenado e financiado a construção de uma série de edifícios que moldaram a cidade. Seu legado não estava em seu nome nos livros de história, mas em cada esquina de Sarajevo, no silêncio das pedras e nos ecos das suas construções. A mesquita de Gazi Husrev Bey, a madrasa, a biblioteca, o imaret, a casa de hóspedes, todos aqueles lugares que ainda respiram a memória de um homem que, mais do que expandir territórios, soubera fundar algo ainda mais sólido: instituições que, ao longo dos séculos, tornaram-se os alicerces da identidade da cidade. Isso sempre me faz pensar em quem empreende e constrói hoje. Será lembrado daqui a alguns séculos como um visionário?
Enfim, o mais curioso, e o que mais me fez refletir, foi a forma como Gazi Husrev Bey, ao morrer, legou sua riqueza não apenas para a manutenção das suas construções, mas para a sustentação de um ideal. Um ideal que transcendia os tempos e as fronteiras, estabelecendo um sistema que não se baseava no poder militar ou na dominância territorial, mas em algo mais sutil e, talvez, mais duradouro: o cuidado com as instituições e as pessoas. A criação de um vakuf, como um compromisso com o futuro da cidade e de seu povo, é talvez um dos gestos mais ricos que um homem pode deixar, especialmente quando ele entende que o tempo não se resume ao presente imediato, mas ao que perdura.
E aqui, no coração de Sarajevo, enquanto escutava meu amigo falar sobre esses feitos, eu me vi pensando em algo mais, algo que se estende para além da história de Gazi Husrev Bey. Era como se a própria cidade estivesse dizendo, através de suas ruas, suas pedras e seus monumentos, que o verdadeiro legado de um lugar não está naquilo que conseguimos conquistar para nós, mas no que conseguimos deixar para os outros. E não apenas para os outros de nosso tempo, mas para os que virão, para os que caminharão por aquelas mesmas ruas, anos, séculos depois. Por isso a máxima de amar ao próximo como a ti mesmo ou ainda de não fazer ao outro o que não gostaria que fizesse consigo tomam grande proporção aqui.
Talvez seja isso que Gazi Husrev Bey tenha compreendido em sua vida e transmitido ao legado que construiu em Sarajevo. Algo que é, de certo modo, mais difícil de alcançar do que qualquer vitória militar: a construção de um espaço que acolhe, educa, preserva e conecta. A história de Gazi Husrev Bey não é apenas uma história de grandes feitos ou batalhas, é uma história de generosidade silenciosa e de uma visão do futuro.
Ali, parado diante daquela mesquita, senti que, talvez, Sarajevo não fosse só um lugar onde as pedras falam do passado, mas também onde as pessoas ainda são chamadas a pensar no que podemos construir para os outros. Porque, de certa forma, Sarajevo, com toda a sua complexidade histórica, é um reflexo de algo mais profundo: um convite para refletirmos sobre o nosso próprio legado. Sobre as fundações que estamos, todos os dias, colocando, sem perceber, para as gerações que virão. Sarajevo é semente que está na árvore e que um dia será árvore da mesma forma que a árvore um dia foi semente.
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