O Alto Representante, figura quase orwelliana, personifica esse paradoxo. Nomeado por instâncias internacionais, ele tem o poder de demitir políticos, revogar leis e até intervir em instituições locais. É uma autoridade que não emana do voto, mas do trauma. E, no entanto, essa tutela externa é ao mesmo tempo um remédio e um sintoma: a comunidade internacional, que ajudou a parar o conflito, ainda não confia plenamente na capacidade dos bósnios de governarem-se sem supervisão. Há quem diga que o cargo é necessário; há quem murmure que é um veto disfarçado à soberania.
A Presidência tripartite, um bosníaco, um croata, um sérvio, gira em um rodízio cerimonial, como se o simples ato de compartilhar o poder fosse, em si, uma vitória. Mas essa engenharia étnica tem um custo: a política torna-se, muitas vezes, uma disputa por quotas de representação, não por ideias. Os partidos não competem por projetos de país, mas por fatias de influência dentro de seu grupo. O resultado é um sistema onde a imobilidade é, por vezes, mais valorizada do que o progresso, porque qualquer movimento brusco pode reacender velhas tensões.
O Parlamento, com suas duas câmaras e suas regras de veto implícitas, parece concebido para dificultar decisões radicais. Isso evita excessos, mas também engessa reformas. Leis essenciais podem levar anos para serem aprovadas, não por falta de consenso técnico, mas porque qualquer avanço em uma direção é visto como uma ameaça por outro grupo. A democracia bósnia, assim, não é apenas lenta, é cautelosa ao extremo, como um homem que, depois de quebrar os ossos, passa a andar com medo de tropeçar.
E, no entanto, há algo de admirável nessa frágil construção. A Bósnia e Herzegovina é um laboratório político único, um lugar onde a democracia não é um dado adquirido, mas uma conquista diária. Se em outros países a política se resume a disputas entre esquerda e direita, aqui ela é, acima de tudo, um exercício de equilíbrio entre memória e futuro.
Nas ruas de Mostar, onde a ponte reconstruída liga duas margens ainda psicologicamente divididas, ou em Banja Luka, onde o passado recente é narrado de formas radicalmente diferentes, percebe-se que a política é a difícil arte de conviver. Talvez, por isso, ela seja tão complexa. Talvez, por isso, ela ainda valha a pena.
Afinal, a paz não é a ausência de conflito, mas a capacidade de lidar com ele sem violência.Voltamos a pensar aqui na ideia de paz positiva de Galtung... Na Bósnia, essa capacidade está sendo testada todos os dias. E, até agora, contra todas as expectativas, ela tem resistido. Esperamos que este modelo possar ser exemplo futuro para muitas outras regiões que ainda travam disputas e estão em um estágio anterior ao da paz negativa.
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