O vento cortante das montanhas balcânicas levanta a poeira do cemitério judeu mais antigo dos Balcãs. Caminho entre lápides que descem a colina de Kovači como um rebanho de pedras cansadas. De repente, paraliso: ali, gravado no mármore musgoso, brilha o nome "PEREIRA". Mais adiante, "CARDOZO" emerge sob líquenes. Depois "BENVENISTE". São sílabas familiares em terra estranha, ecos de um Portugal e Espanha que estas ossadas carregaram no exílio. Coloco a mão sobre as letras gélidas. Neste instante, cinco séculos desmoronam.
Foi em 1492, enquanto Colombo navegava para o desconhecido, que os primeiros navios de judeus sefarditas expulsos pela ânsia purificadora dos Reis Católicos atracaram em Dubrovnik. O sultão otomano Bayezid II, pragmático e visionário, enviou sua frota ao resgate. Diz a lenda que ao ouvir notícias da expulsão, comentou: "Vocês chamam Fernando de sábio? Ele empobrece seu reino para enriquecer o meu!". Assim chegaram a Sarajevo, médicos com receitas de açafrão guardadas em baús, ourives que transformaram prata balcânica em filigranas mouriscas, mercadores cujo ladino (essa língua-catedral onde castelhano arcaico se fundia com hebraico e turco) ecoava nas ruas de Baščaršija.
Durante gerações, foram os alfaiates que vestiram os beis otomanos, os banqueiros que financiaram pontes sobre o Drina, os tradutores que decifraram tratados entre Veneza e Istambul. Suas sinagogas de madeira espelhavam minaretes nas proporções. Rezavam em hebraico, negociavam em turco, declamavam poesia de amor em ladino. Nas vielas de Travnik, crianças judias brincavam de açucar (esconde-esconde) com amigos muçulmanos, enquanto avós compartilhavam receitas de borekas e börek. A prova máxima dessa simbiose repousa na Biblioteca Nacional: a Sarajevo Haggadah, manuscrito iluminado em Barcelona no século XIV, salva durante a ocupação nazista por Derviš Korkut, um bibliotecário muçulmano que a escondeu entre Alcorões numa aldeia montanhosa. Essa é uma outra história dessa minha estada em Sarajevo...
Ajoelho-me diante de uma lápide quase engolida pela terra: "David Pereira". Teria nascido em Coimbra, a cidade que me acolheu anos atrás durante meus estudos e de onde parte de minha família também viveu em épocas remotas? Falecido em Sarajevo. Não consigo decifrar o ano... Imagino esse homem desembarcando com uma chave de casa portuguesa pendurada no pescoço, símbolo inútil de um retorno impossível. Quantos Pereira deixaram filhos chorando em portos de Lisboa para enterrar netos sob neve balcânica? Suas vidas foram um exercício de transmutação cultural: trouxeram o fado antes do fado existir, cozinhas de azeite que influenciaram o ćevapi local, cantigas sefarditas que ecoam nas escalas do sevdalinka. No mercado Gazi Husrev-beg, imagino eu, será que se vende vinho de figo que alguma família Cardozo fabricava para "curar saudades"?
A tarde cai enquanto continuo a ler as lápides. Em uma delas, um ramo de alecrim seco repousa sobre a pedra, deixado por visitantes desconhecidos. Rezo o Kadish por almas que nunca conheci, mas cujo sangue compartilho na diáspora. O vento responde com sussurros em ladino: "Kaminos de espinho topamos, mas la vida es flor" (Caminhos de espinhos percorremos, mas a vida é flor). Deixo minha pedra ali também para marcar a lembrança de que estarão e serão sempre lembrados.
Ao descer a colina, imagino-me na Antiga Sinagoga. Do interior chega o som de uma voz idosa cantando "Adio Kerida", canção sefardita de despedida que sobreviveu ao exílio, às inquisições, aos pogroms. No café vizinho, penso eu, um jovem de kipá serve baklava a clientes muçulmanos. "Os Pereira?", assim perguntaria o dono ao ouvir meu interesse em uma época remota. O pensamento voa, sonho acordado. "Minha bisavó trabalhava para eles. Diziam que tinham mãos que curavam com ervas e palavras portuguesas".
Restam hoje poucos judeus na Bósnia. Seu legado, porém, está gravado na alma de Sarajevo. Como a Haggadah sobrevivente, salva por muçulmanos em 1941, protegida por sérvios durante o cerco de 1992, testemunham a única lei sagrada que atravessa religiões: a humanidade compartilhada. Na Ponte Latina, observo o rio Miljacka correr em direção ao Danúbio, que deságua no Mar Negro, que encontra o Mediterrâneo... até as praias de Portugal. Levo comigo os Pereira de Sarajevo, esses desenraizados que transformaram perda em pertencimento. Suas lápides ensinam o que nenhum livro registra: pátria não é solo, mas memória. Identidade não é fortaleza, mas ponte. E às vezes, na geografia mais inesperada, pedras mortas gritam nomes que são portos de abrigo.
A família está na humanidade de cada um.
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