Quando estudei em Coimbra, Boaventura de Sousa Santos era uma referência central em nosso Centro de Estudos. Suas aulas magnas, sempre visitadas com intensidade pelos coelgas, despertaram em mim uma visão mais crítica e profunda sobre o mundo. Aqui em Sarajevo, essas lições adquiriram um contorno particular, especialmente ao me deparar com a complexidade multicultural e pós-conflito da Bósnia. Na Universidade, assim que cheguei e mencionei Boaventura em alguma conversa um dos professores que me acolheu logo perguntou: "Você se refere ao Picasso da Sociologia?" Em tom de grande admiração. Não sabia que ele era lembrado e comentado na Bósnia, o que nos faz pensar a respeito de como um trabalho, teória, escrito, texto, enfim, obra, pode impactar pessoas de diferentes formas ao redor do mundo.
Enfim, conversamos muito sobre Boaventura até chegar ao conceito de "epistemologias do Sul", uma das bandeiras do professor Boaventura que me fazia refletir ali, naquela ocasião, e que pensava ser relevante ao observar a Bósnia. Digo isso porque nas ruas de Sarajevo, é impossível não perceber que o conhecimento local, que muitas vezes foi negligenciado ou mesmo ignorado por abordagens ocidentais, tem um peso significativo. A Bósnia não é apenas um "caso a ser resolvido", mas um lugar onde a experiência histórica e cultural dos seus habitantes tem algo a ensinar ao mundo.
O que me chama a atenção é como oconceito de Boaventura sobre a "linha abissal", essa divisão entre o que é considerado legítimo ou relevante e o que é marginalizado, se aplica diretamente à forma como a Bósnia é vista no cenário global. O país, e mais especificamente Sarajevo, parece viver entre essas duas margens. Por um lado, há a pressão das narrativas globais que tentam definir o que é progresso ou desenvolvimento. Por outro, há a resistência silenciosa dos saberes locais, daqueles que reconstruíram suas vidas, suas culturas e suas identidades, muitas vezes ignorados pelos modelos ocidentais.
Em minha vivência aqui percebo como as noções de "globalismos locais" e "localismos globais", que Boaventura também explora, se manifestam de maneiras complexas. A Bósnia é um espaço onde as pressões externas de integração europeia e de modernização convivem com formas de resistência que buscam preservar tradições, culturas e formas de convivência que escapam ao controle global. O multiculturalismo que a Bósnia representa não é um ideal unificado ou homogêneo; ele é uma luta constante entre diferentes visões de mundo e formas de pertencimento. Fora a influência externa que sofrem por estar geograficamente em um lugar de transição, de passagem, travessia.
Essa tensão entre o local e o global, entre as narrativas dominantes e as vozes silenciadas, é o que dá à Bósnia uma profundidade única. O pós-conflito aqui não é apenas sobre reconstrução material, mas também sobre reconstrução social e epistemológica. Como se constrói uma paz duradoura em uma sociedade marcada pela divisão? Como se reconstrói a confiança entre comunidades que foram históricamente antagonistas? Essas não são perguntas simples e, ao tentar respondê-las, o país oferece lições valiosas sobre o que significa viver e pensar a partir de lugares que, muitas vezes, foram colocados à margem.
A experiência de aqui conviver, misturada com as lições de Coimbra, me faz acreditar que a Bósnia, mais do que um "exemplo de falha", é um exemplo de possibilidades. Ela revela como o localismo pode ser uma forma legítima de resistência ao globalismo, sem, no entanto, cair na armadilha do isolamento ou da nostalgia. Por essa razão a ideia de cosmopolitismo pode ser aqui também experimentada. A Bósnia é, ao mesmo tempo, um lugar de grandes tensões, mas também de novas formas de convivência, aprendizado e de repensar o que significa viver em um mundo globalizado a partir do local. Outra referência que me chega é a ideia de hermenêutica diatópica também explorada por Boaventura, mas que deixo para um texto mais acadêmico para não vos cansar.
Quando olho para as lindas ruas de Sarajevo, para suas pessoas e para a cidade, é impossível não reconhecer que, embora ainda marcada pelas cicatrizes da guerra, a Bósnia continua a nos ensinar algo fundamental sobre as formas de resistência e as epistemologias que emergem de lugares esquecidos. Em tudo isso, Boaventura, com sua crítica ao modelo único de desenvolvimento, oferece um caminho para entender melhor não só a Bósnia, mas também o mundo em que vivemos. Acho que nada é obra do acaso e por essas e muitas outras razões estou novamente aqui.
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