Quando decidi me aventurar pelos labirintos das relações internacionais, no distante ano de 2001, era quase inevitável que uma figura como Sérgio Vieira de Mello se tornasse uma referência, fonte de inspiração. Naquela época, ainda imaturo, mal compreendia a profundidade das palavras “missão de paz” ou “humanidade”, peacebuilding ou qualquer outro termo das RI, mas algo nele me tocava e dava perspectiva, visão. Talvez fosse o olhar de um homem que não se limitava a defender um país ou uma ideologia, mas se dedicava àquilo que ele considerava ser o maior de todos os serviços: a construção de um mundo melhor, mais justo, mais humanitário. Pouco pensei em ser diplomata ao longo de meus estudos, pois havia um anseio pelas Nações Unidas, ainda que com o passar do tempo isso tenha tomada outras direções.
Sérgio, com seu sorriso discretamente seguro e sua postura serena, possuía algo que transcendia a diplomacia tradicional para mim. Não era apenas um diplomata, não era apenas um “servidor da pátria”. Ele estava além disso, era um servidor civil das Nações Unidas, se é que essa diferenciação de termos faz algum sentido para tentar me explicar. E, ao me aprofundar em suas missões, em seus compromissos internacionais, e ao estudar sua trajetória, biografia senti-me atraído por um ponto de vista radicalmente cosmopolita, que eu então não compreendia completamente, mas que agora vejo com clareza: um homem que não se rende a limites geográficos, mas que é, por sua própria natureza, um cidadão do mundo. Era assim que pensava já no final da faculdade nos idos de 2004.
Esse cosmopolitismo, que no começo parecia uma ideia abstrata, foi se tornando cada vez mais palpável à medida que os anos se passavam e a realidade das relações internacionais se revelava mais complexa do que imaginávamos. Nos primeiros anos, quando a minha percepção da política mundial ainda estava moldada pelas dicotomias clássicas de “nós” contra “eles”, Sérgio parecia um farol de uma possibilidade mais nobre. Ao contrário de tantos outros, que em sua busca por poder e segurança, se agarram à ideia de “nações” e suas bandeiras, para mim era o verdadeiro servidor global. Sua missão, ao contrário da maioria dos diplomatas, não se tratava de elevar um único país, mas de atuar, sem hesitação, em prol da humanidade. Isso para mim fazia mais sentido ao examinar a dinâmica e o contexto internacional. Me parece ser um interesse maior, mais metafísico ou abstrato dentro do cenário real das RI.
E é por isso que, ao refletir sobre a Bósnia, e especialmente sobre a sua atuação aqui, a figura de Sérgio surge com força durante essa minha estada. A Bósnia, tal como tantos outros cenários pós-conflito que ele enfrentou, representava um quebra-cabeça de soberanias, etnias e feridas abertas, todas demandando uma abordagem que fosse além das diplomacias convencionais. Aqui Sérgio foi mais do que um mediador, foi o arquiteto de uma reconstrução emocional e política, muitas vezes não reconhecida nas suas facetas mais visíveis. Como em outras missões que ele abraçou, de Timor-Leste a Kosovo, do Sudão à Albânia, o que Sérgio trazia consigo não eram apenas as soluções técnicas de um diplomata treinado, mas o espírito de um homem que realmente acreditava no potencial da paz e no poder da diplomacia como ferramenta de transformação.
Foi na Bósnia, nesse cenário tão complexo de reconstrução e reconciliação, que ele se destacou não só pelo domínio da arte diplomática, mas pela sua capacidade única de ouvir e de enxergar o humano no meio da tragédia. Não era a Bósnia de um único lado, mas a Bósnia das várias histórias, dos múltiplos sujeitos, e ele, com sua habilidade inata para abraçar a complexidade, conseguiu colocar-se de uma forma genuína ao lado de todos os envolvidos. A visão binária dos “bons” e “maus” estava fora de questão, e essa característica se tornou algo que, sem dúvida, alimentou minha própria formação acadêmica. Nisso me interesso, no local. Sérgio parece romper com o padrão top down dentro do próprio sistema ONU, por isso fascina.
Sim, Sérgio foi um homem que, ao contrário dos muitos que ainda procuram defender os interesses de uma única nação, transcendia o conceito de “pátria” em sua visão diplomática. Sua lealdade estava com a humanidade. Esse foi o grande ensinamento que me impulsionou na minha própria trajetória, até mesmo ao ponto de não me ver mais como um servidor de um único país, mas como alguém que, ao estudar relações internacionais, desenvolve uma visão mais ampla, mais inclusiva, mais global. Bom, é preciso retirar aqui toda minha pretensão ou imaturidade, mas é difícil falar de quem nos inspira sem nos projetar ao mesmo tempo...peço desconsiderar meu excesso e romantismo.
Hoje, ao olhar para o cenário internacional e para os desafios da Bósnia pós-guerra, vejo com mais clareza o que Sérgio representava: uma visão imensa de compaixão e compromisso, sem concessões ao nacionalismo estreito, sem os limites da diplomacia tradicional. E, ao me perceber refletindo sobre ele, reconheço algo em minha própria vivência na Bosnia que, de certo modo, me aproxima dele. Como ele, procuro neste momento a causa maior da paz e da dignidade humana por meio de minha invesitgação sobre paz aqui, temas tão caros a Sérgio e à sua incansável missão.
Na sua atuação na Bósnia, onde a reconstrução não foi apenas física, mas também moral e política, Sérgio traçou o caminho de um novo tipo de diplomacia: aquela que não se rende a uma única bandeira, a um único conflito, mas que reconhece, acima de tudo, a dignidade de todos os povos, ou seja, o aspecto local que tanto busco. E assim, ao seguir suas pegadas, percebo que, ao estudar as complexidades do mundo, mais do que nunca, acho me sinto parte, de modo muito pequeno, mas inspirado por algo grandioso – uma missão que nunca se limita a um país ou a uma ideologia, mas que abrange a todos, sem exceção. É minha vontade de fato.
Sérgio, com seu legado de serviço internacional, foi, é e sempre será uma inspiração para aqueles que, como eu, buscam não apenas entender, mas contribuir para a criação de um mundo mais justo. E, enquanto reflito sobre sua atuação na Bósnia e sua vida dedicada à causa humana, não posso deixar de sorrir diante do paradoxo: um homem que fez da diplomacia uma arte, e, ao mesmo tempo, a mais pura forma de humanismo. Esse é o verdadeiro espírito que espero ser projetado pela Governança Global, que Sérgio representava de maneira tão irrepreensível. E é essa visão que, ao longo de minha estada aqui, busco seguir, com todos os desafios e complexidades que as RI impõe.
Ao chegar e ao sair de Sarajevo, estou sempre a lembrar de Sérgio por aqui. Acho que devemos dizer obrigado pelo trabalho dele e de muitos que como ele trabalhavam para esse equilíbrio tão distante de muitas realidades do globo.
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