Srebrenica, com sua paisagem serena de montanhas verdejantes e o tranquilo fluir do rio Drina, é um lugar cuja beleza parece quase desumana diante da história que carrega em suas entranhas. Durante a minha passagem por lá, não pude deixar de me sentir esmagado por uma sensação de dissonância entre o esplendor natural e a tragédia que ali ocorreu. A suavidade da paisagem e o ritmo quase meditativo da vida local contrastam brutalmente com as cicatrizes deixadas pela guerra e o genocídio de 1995, um evento cujas reverberações ainda ressoam profundamente nas almas de todos os que habitam este pedaço de terra marcada pela violência étnica.
Era uma manhã ensolarada quando cheguei a Srebrenica. As montanhas estavam cobertas por uma neblina suave que fazia com que a cidade parecesse ainda mais afastada, como se estivesse longe de qualquer tempo ou lugar. Caminhei pelas ruas, tentando absorver a calmaria que cercava o ambiente. Mas, em cada olhar que cruzava meu caminho, havia algo mais, algo que me dizia que aquele cenário idílico era apenas a fachada de uma história muito mais profunda. E não demorou para que essa história se revelasse, lenta e dolorosamente.
Fui até a base da ONU abandonada, em Potocari, um lugar que parecia ainda ecoar com os gritos de desespero daqueles que ali buscaram abrigo e proteção, mas que nunca a encontraram. Estava vazia, deserta, sem qualquer sinal de vida, mas o peso da memória do fracasso internacional parecia preencher cada espaço. A base, que deveria ser um símbolo de segurança e esperança, tornou-se um monumento da falha, da omissão, e da incapacidade de salvar vidas humanas diante da brutalidade do que estava acontecendo a poucos quilômetros dali. A tragédia de Srebrenica foi uma falha coletiva de humanidade. O mundo observava, mas não intervinha. Naquela base, abandonada e silenciosa, o eco da impotência era quase palpável. Afinal, quantas falhas como essa aconteceram e continuam a acontecer?
Ao sair dali, fui até o cemitério, onde repousam milhares de vidas. Lá, encontrei uma senhora, de semblante sereno, mas com uma tristeza profunda nos olhos. Ela estava parada, olhando para as fileiras de túmulos que se estendiam em todas as direções, como um campo imenso de perda. Eu me aproximei, respeitosamente, e começamos a conversar. Ela me falou sobre sua experiência, sobre o que aconteceu em 1995, sobre os desaparecimentos e as mortes que marcaram a vida de toda a cidade, região e país. E, ao ouvir suas palavras, de alguma forma, senti uma imensa tristeza e até certo sentimento de culpa que nos consome ao refletir.
O que mais me tocou, porém, não foram apenas suas palavras sobre o sofrimento, mas a forma como ela falou da vida após a tragédia. Ela me disse que, apesar de tudo o que havia perdido, ainda acreditava no futuro de sua terra. Impressiona a força com que ela disse: "Aqui, entre estas montanhas, o vento ainda sopra. As árvores ainda crescem. E, de alguma forma, a vida ainda encontra uma maneira de florescer". O silêncio que se seguiu foi denso e profundo, como se a terra ao redor absorvesse não só as palavras, mas o próprio sofrimento que pairava no ar. Eu entendo tudo isso como uma oração, uma prece, ali feita para que fosse contemplada em respeito a todos que ali pereceram.
Nos toca de forma intensa, sendo mesmo estranho, o fato de estar em um lugar tão bonito e pacífico, cercado pela natureza em seu auge, e, ao mesmo tempo, saber que foi ali, nessas mesmas montanhas, onde centenas de milhares de pessoas foram exterminadas, onde o conceito de "humanidade" foi rasgado e jogado nas profundezas do horror. Como pode o ser humano ser capaz de tal crueldade? Como pode a ética ser dilacerada dessa forma, permitindo que a divisão étnica, o ódio, o preconceito, transformem uma região outrora de convivência em um cenário de extermínio? Essas mesmas reflexões são feitas sistematicamente ao longo dos anos e nos faz pensar em outras muitas tragédias como o genocídio armênio, o judaico, o de Ruanda, dentre outros.
Essa dicotomia entre a beleza natural e a brutalidade da tragédia me fez pensar sobre as complexas questões étnicas que ainda dividem a região, e o que isso diz sobre o mundo em que vivemos hoje. Em um país ainda profundamente marcado pelas cicatrizes da guerra, o conceito de “nação” continua sendo disputado, não apenas nas arenas políticas, mas é bem possível que também esteja nos corações e mentes dos cidadãos. Étnica, religiosa, apesar do tempo não é fácil superar e talvez jamais eu possa compreender isso. Por mais ser humano que eu sejamos, entender é algo muito local, pessoal, de quem viveu e vivenciou o conflito. O pacto de convivência foi quebrado de tal forma que a própria identidade da Bósnia e Herzegovina foi dilacerada e é sempre nessa identidade que penso nesses momentos e nas reflexões, de alguma maneira, torço infinitamente para que seja reestabelecido. Essa beleza toda contemplada precisa de vida, fôlego e harmonia.
Impossível foi não lembrar do filme "Quo Vadis?". A história do fim do império romano, do cristianismo nascente e das questões de moralidade e poder, espelha, de certa forma, a situação de Srebrenica. A cidade de Srebrenica, como Roma, foi destroçada por forças que não compreendiam ou não se importavam com os princípios básicos de humanidade, com a dignidade de um povo. A pergunta que ecoa no filme, “Para onde vais?”, é também a pergunta que me faço ao caminhar por Srebrenica. Para onde vai a Bósnia e Herzegovina? Para onde vão os povos que lá vivem, divididos, traumatizados, mas também, de alguma forma, dispostos a reconstruir? Não somente eles, mas para onde caminhamos? A humanidade...
A senhora com quem conversei naquele cemitério, no entanto, me ofereceu uma resposta silenciosa, mas poderosa. Talvez seja a lembrança de Srebrenica que leve os bósnios a acreditar que a cura é possível, que, por mais divididos que estejam, um dia poderão encontrar uma maneira de reconstruir não apenas seus lares e cidades, mas também suas almas. A terra de Srebrenica, embora marcada pela dor, não perdeu sua beleza. Ela ainda é fértil, ainda é capaz de nutrir a vida, por mais que a guerra tenha tentado exterminá-la. O povo é bom e se há um olhar profundo, há também um sorriso lindo, como se na memória e nos olhos estivesse o passado, mas no sorriso e alegria está o futuro, a beleza da paisagem, o coração acolhedor daquela gente.
Enquanto isso acontece, o silêncio das montanhas de Srebrenica é, para mim, um lembrete constante: que a memória, por mais que tentemos apagá-la, estará sempre presente, guardada nas pedras, nas árvores, nas águas do Drina e nas palavras de quem sobreviveu. Srebrenica é mais um aviso de que a humanidade precisa aprender que a tragédia é evitável, que o diálogo e a convivência são possíveis, e que, no final, somos todos responsáveis uns pelos outros, co-criadores.
Ao deixar Srebrenica, as montanhas ficaram para trás, mas o eco da história me acompanhou por todo o caminho e a vida.
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