Para quem vem de terras longínquas como eu, ir de Sarajevo para Belgrado não é mistério. Pelo contrário, é mesmo perto e recomendável. Aproveitei o período de mobilidade em Sarajevo para ficar um mês em Belgrado, antiga capital da Iugoslávia - não podia perder essa chance. Afinal, nasci em uma época curiosa em que a Iugoslávia era entendida como o meio do caminho, entre o mundo desenvolvimento e o mundo em desenvolvimento, o chamado países do segundo mundo. Em Belgrado, o frio fazia com o que o dia estivesse maravilhoso. O murmúrio da vida cotidiana me trouxeram uma sensação inesperada de nostalgia, aquele tempo que não volta mais, mas está ali em algum registro da nossa história. Não é uma saudade qualquer, mas uma nostalgia cheia de camadas e ambiguidades, uma espécie de iugonostalgia, saudade da antiga Iugoslávia. Um país que, embora não exista mais, ainda paira sobre a memória coletiva da região e de muitos como eu que tiveram a oportunidade de acompanhar a Iugoslávia pela TV e pelas notícias.
Ao caminhar pelas ruas da capital sérvia, não é difícil sentir a presença de Josip Broz Tito. Os vestígios da sua liderança estão em cada esquina, nas estátuas e no Museu da História da Iugoslávia, onde seu corpo repousa, imortalizado para sempre. Tito foi um líder político; foi o arquétipo de uma era em que a Iugoslávia parecia ser, ao mesmo tempo, um sonho e um castigo. Criador de um país onde as divisões étnicas e religiosas eram abafadas por um governo centralizado, ele sabia o peso de sua tarefa. Mas, ao mesmo tempo, soubera mostrar ao mundo que a Iugoslávia era uma força a ser reconhecida. Seu governo, que durou de 1945 até sua morte, em 1980, construiu uma nação socialista e autônoma, longe da União Soviética, mas também distante do Ocidente. Como podemos avaliar e perceber isso? Seria esse um ideal socialista razoável e possível? Como e por que falhou? São as perguntas que, apesar das respostas que temos, nos faz voltar à refletir.
Tito nasceu em Kumrovec, em 1892, no que então fazia parte do Império Austro-Húngaro, e sua trajetória foi marcada por uma série de curiosidades. Durante a Primeira Guerra Mundial, serviu no exército austro-húngaro, depois lutou ao lado dos bolcheviques na Revolução Russa, e, ao longo dos anos 30, tornou-se um líder comunista de destaque. Sua verdadeira glória, no entanto, viria com a Segunda Guerra Mundial, quando liderou a resistência iugoslava contra a ocupação nazista, reunindo um exército de guerrilheiros que, com astúcia e coragem, se tornaram um dos movimentos de resistência mais eficazes da Europa.
O pós-guerra trouxe a Tito um poder incontestável. Ele liderou o movimento de não-alinhamento, uma tentativa de criar uma terceira via entre os blocos soviético e ocidental, e conseguiu que a Iugoslávia fosse uma espécie de ilha socialista independente. Seus discursos eram cheios de confiança e de uma retórica que exaltava a unidade nacional, sem jamais esconder que a unidade que ele promovia era, em grande parte, sustentada pelo controle rígido e pela repressão. Nenhuma dissidência era tolerada. Mas, por outro lado, o país prosperou. Houve um relativo crescimento econômico e uma estabilidade que muitas nações da Europa Oriental nunca experimentaram sob o regime soviético.
A sua habilidade política era notável, mas também o era a maneira como ele conciliava as diversidades do país. Na Iugoslávia, se você se encontrasse com um croata, um sérvio, um esloveno ou um bósnio, poderia sentir, na superfície, que as diferenças entre eles haviam sido suavizadas. Mas, na realidade, elas estavam ali, sempre presentes, abaixo da superfície, esperando a oportunidade para emergir. Tito soubera controlar essas tensões, mantendo-as em um equilíbrio instável que, após sua morte, se desfez de maneira trágica. A pergunta é: como Tito conseguiu unir o povo?
A verdadeira peculiaridade de Tito estava em sua capacidade de unir as diversas repúblicas da Iugoslávia, todas com suas peculiaridades culturais, étnicas e religiosas, sob uma mesma bandeira. Mas a ironia dessa união era que ela era, em grande parte, uma união forçada. A promessa de um país socialista e unido jamais se concretizou plenamente, e o que parecia uma harmonia nacional era, na verdade, uma paz imposta, onde as tensões étnicas estavam reprimidas, mas não resolvidas. Era uma paz que se baseava na presença de Tito e na sua figura carismática, quase messiânica. Isso também nos convida a pensar nas muitas nações que tem líderes fortes e que com sua ausência esse traço unificador possa vir a ruir.
O fim da Iugoslávia, após sua morte, veio como uma tragédia anunciada. A guerra civil que se seguiu na década de 1990 mostrou o que muitos já sabiam, mas preferiam ignorar: as divisões que Tito mantivera sob controle durante sua vida eram profundas e irreconciliáveis. A Bósnia, que hoje ainda vive as cicatrizes daquele período, foi um dos maiores exemplos disso. As memórias da guerra, de etnias divididas e cidades destruídas, são um legado sombrio daquilo que um dia foi a Iugoslávia. E ao caminhar por Belgrado, ou ao pensar na Bósnia, é impossível não sentir as sombras dessa guerra e o peso do legado que Tito deixou.
A cidade de Belgrado, com seus contrastes, parece ser um reflexo da própria Iugoslávia: uma fusão de diferentes elementos históricos e culturais, de velhas glórias e cicatrizes ainda visíveis. Os muros, que carregam os resquícios de sua arquitetura socialista, convivem lado a lado com a modernidade. Mas, no meio disso tudo, Tito ainda é uma presença inescapável, uma lembrança de um país que existiu e que, embora nunca tenha sido perfeito, gerou uma forma de identidade coletiva que, para muitos, ainda é difícil de abandonar.
Iugonostalgia é esse sentimento de saudade. É uma memória complexa, uma reflexão sobre um tempo que já passou, mas que ainda influencia o presente. Não é fácil entender a Iugoslávia de Tito, com seus paradoxos, suas glórias e seus erros. Mas ao olhar para Belgrado, ao caminhar por suas ruas e observar as expressões dos que viveram sob seu regime, você percebe que a nostalgia não é apenas de um tempo de prosperidade, mas também de uma busca por uma identidade que, talvez, nunca tenha sido completamente encontrada.
Em Belgrado, a memória de Tito permanece. E em Sarajevo, na Bósnia, ela ressurge em cada esquina, em cada memória daqueles que viveram o conflito. A Iugoslávia pode ter sido dividida, mas sua memória, suas tensões e seus sonhos de unidade, continuam a nos assombrar, desafiando-nos a compreender não apenas o passado, mas o que ainda permanece por resolver. Seria a integração regional uma saída para o retorno a esse momento e a partir daí uma integração maior? Ou seja, uma identidade preservada como Bálcãs, mas europeia em termos políticos?
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